Reforma da previdência: equilíbrio atuarial, mas ainda longe do justo

Ao estabelecer a idade mínima de aposentadoria e vincular o cálculo dos benefícios ao tempo de contribuição, o projeto de reforma da previdência resolve os potenciais desequilíbrios estruturais do sistema. Mas é preciso avançar para equacionar as distorções que continuarão afetando trabalhadores e empresas.

Pela proposta, se uma pessoa começasse a trabalhar hoje aos 30 anos, com rendimentos mensais de R$ 1,5 mil e contribuísse por 35 anos para o INSS, teria direito a aposentadoria de 86% do salário a partir dos 65 anos de idade. A premissa desta simulação é que não ocorrerão ganhos salariais reais – acima da inflação – durante toda a carreira.

Assim, a contribuição previdenciária do trabalhador seria de 8% sobre os rendimentos e a empresa desembolsaria outros 20%. Assumindo, por hipótese, que as contribuições previdenciárias fossem segregadas em aplicações financeiras com rendimentos de 2,5% ao ano acima da inflação, no fim do período de 35 anos o montante acumulado atingiria R$ 280 mil.

Com esse valor, seria possível financiar o resgate mensal de R$ 1.290 que o trabalhador receberia como aposentadoria até que completasse 89 anos. Como a expectativa de vida de uma pessoa que chega aos 65 anos hoje no Brasil é de 85 anos, o sistema de previdência administrado pelo INSS tenderia a registrar um superávit atuarial.

Com juros maiores, o sistema seria ainda mais superavitário. Hoje a remuneração dos títulos públicos com prazo de vencimento de 33 anos é de cerca de 6% ao ano. Nessa taxa, as reservas atingiriam o montante de R$ 580 mil e poderiam financiar a aposentadoria indefinidamente, apenas com o resgate dos juros, sem redução do principal.

Com o problema de solvência do governo potencialmente solucionado, é preciso avaliar os impactos da reforma para trabalhadores e empresas. Um primeiro ponto é ter em perspectiva que o salário tende a subir ao longo da carreira.

Considerando a mesma remuneração inicial de R$ 1,5 mil do exemplo anterior, mas assumindo aumentos anuais contínuos de 3,6% acima da inflação, o salário atingiria R$ 4.993 após 35 anos, a valores de hoje.

O cálculo da aposentadoria leva em conta a média das contribuições. No caso específico, 86% sobre esse montante médio resultaria num benefício de R$ 2.506. O valor é igual a 50% do último salário.

Portanto, uma primeira consideração que o trabalhador deve fazer é que o benefício da aposentadoria somente ficará próximo aos salários dos últimos anos caso não ocorram aumentos expressivos de remuneração ao longo da carreira.

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Considere, agora, o cenário em que o salário inicial é de R$ 2,5 mil e cresce à taxa de 6% ao ano acima da inflação até atingir o teto de contribuição do INSS, de pouco mais de R$ 5 mil. Isso ocorreria depois de 12 anos. Assuma, também, que o crescimento salarial a partir do 13º ano é mais lento, de 2% ao ano acima da inflação. Após 35 anos o salário seria de R$ 7,8 mil.

Ao atingir o teto do INSS, a contribuição previdenciária do trabalhador é congelada em R$ 570, equivalente a 11% do valor estabelecido como base. No entanto, a parcela descontada da empresa continua sendo de 20% sobre o salário total.

Na prática isso gera uma aumento dos recursos à disposição da previdência sem contrapartida no acréscimo das obrigações. É excelente para o equilíbrio atuarial do INSS, mas ocorre em detrimento da parcela da contribuição da empresa que não é revertida ao trabalhador.

Em termos numéricos, considerando a capitalização das contribuições da empresa e do trabalhador a juros reais de 2,5% ao ano, o valor acumulado após 35 anos atingiria R$ 960 mil. É um montante suficiente para financiar a aposentadoria de R$ 4 mil, equivalente a 51% do último salário, por 93 anos.

Se as reservas fossem capitalizadas a juros de mercado, o valor chegaria a quase R$ 2 milhões e a folga do INSS seria desproporcionalmente elevada.

Um cenário de crescimento ainda mais rápido do salário realça a distorção do sistema proposto. Partindo de um salário de R$ 2,5 mil com aumento de 10% ao ano por 7 anos e 5% ao ano daí em diante, a contribuição total capitalizada a juros reais de 2,5% ao ano atingiria R$ 1,4 milhão depois de 35 anos.

A aposentadoria do INSS seria de pouco mais de R$ 4 mil, equivalente a 23% do último salário de R$ 18 mil. O montante acumulado seria suficiente para pagar a aposentadoria até os 105 anos com folga.

Os números sugerem que a proposta de reforma da previdência é injusta com as empresas e trabalhadores do setor privado.

Rumo à privatização da aposentadoria

As regras propostas para a reforma da previdência realçam a necessidade de poupar ao longo da vida ativa para complementar o valor da aposentadoria no futuro. Conforme o projeto em discussão, para ter direito à aposentadoria integral igual ao valor do salário da ativa, o trabalhador que recebe rendimentos de até R$ 5.190 – o teto do INSS – teria que começar a trabalhar aos 25 anos, contribuir por 49 anos e se aposentar aos 74 anos. É uma hipótese irrealista.

Considerando um cenário otimista, se o contrato de trabalho começasse aos 25 anos e o trabalhador decidisse se aposentar aos 65 anos após contribuir por 40 anos, o valor do benefício seria equivalente a 91% do salário. E numa simulação mais realista, caso a contribuição seja de 35 anos, dos 30 até os 65 anos de idade, o montante da aposentadoria seria igual a 86% do salário.

Isso assumindo, para simplificar a análise, que o rendimento do trabalhador será constante desde o começo da vida ativa até a aposentadoria. Quanto mais o salário for subindo ao longo do tempo, maior a defasagem entre o valor da aposentadoria – calculado a partir da média das contribuições – e da última remuneração.

A conclusão é que para conseguir rendimento integral na aposentadoria, o trabalhador terá que se preocupar em poupar parte do salário em aplicações financeiras ou estruturas de previdência complementar. Assumindo expectativa de vida de 85 anos, a diferença entre o valor da aposentadoria do INSS e o rendimento almejado terá que ser coberto por saques desses investimentos.

No cenário otimista, o valor da poupança acumulada aos 65 anos deveria ser de R$ 320 mil para cobrir a diferença de 9% entre o salário hipotético de R$ 5.190 e o valor da aposentadoria. No caso realista, a poupança teria que ser de R$ 375 mil.

Assumindo que o trabalhador economize mensalmente parte do salário para acumular recursos para o futuro, no cenário otimista ele precisaria guardar o equivalente a 5,2% dos rendimentos para atingir seu objetivo. No cenário realista, o esforço de poupança mensal seria de 7,4% do salário. Para os casos de salários acima do teto do INSS, a necessidade de poupança é maior.

A premissa para os cálculos é de rendimento dos investimentos de 2% ao ano real, acima da inflação, tanto no período de acumulação quanto no de desembolso. Isso acaba revelando outro complicador.

O trabalhador interessado em poupar periodicamente para complementar a aposentadoria precisa contornar o fato de que, para valores de aplicação pequenos, as taxas cobradas nos produtos financeiros são elevadas.

Nos planos de previdência, por exemplo, é comum comissão de carregamento de 3% sobre as contribuições e de taxa de administração de 3% ao ano sobre o montante investido. Com esses custos, é difícil atingir o objetivo de rentabilidade de 2% ao ano acima da inflação, conforme usado nas simulações.

Assim, além da reforma macroeconômica da previdência, seria importante o governo avaliar os ajustes microeconômicos que poderiam ser feitos para tornar um pouco menos difícil a vida do trabalhador.

Regras INSS        
         
Teto do INSS 5.190      
período mínimo de contribuição (anos) 25      
% do teto INSS com período mínimo de contribuição 76%      
Adicional do % do teto por ano adicional de contribuição 1%      
Idade mínima de aposentadoria 65      
         
                                        Cenários
Premissas Irrealista Otimista Realista Pessimista
Idade de início da contribuição 25 25 30 25
Idade após período mínimo de contribuição 50 50 55 50
Idade de término do contrato de trabalho 74 65 65 60
Idade da aposentadoria 74 65 65 65
Contribuição adicional (anos) 24 15 10 5
Período total de contribuição (anos) 49 40 35 30
% teto com período total de contribuição 100% 91% 86% 81%
Expectativa de vida (anos) 85 85 85 85
         
                                       Cenários
Simulação Irrealista Otimista Realista Pessimista
Poupança para garantir a renda desde o término do contrato de trabalho até a idade mínima para aposentadoria 0 0 0 318.006
Poupança para garantir o complemento integral da aposentadoria do INSS 0 99.287 154.447 209.607
Valor total da poupança 0 99.287 154.447 527.613
Necessidade de poupança mensal em relação ao salário ao longo do período de atividade 0,0% 2,4% 4,6% 15,6%

 

Situação específica para ganhos acima do teto do INSS        
Salário 10.380 100% acima do teto do INSS
Renda mensal almejada na aposentadoria 8.304 80% do salário da ativa
Renda suplementar acima do terto do INSS 3.114      
         
         
                                    Cenários
Premissas Irrealista Otimista Realista Pessimista
Idade de início da contribuição 25 25 30 30
Idade após período mínimo de contribuição 50 50 55 55
Idade de término do contrato de trabalho 74 65 65 60
Idade da aposentadoria 74 65 65 65
Contribuição adicional (anos) 24 15 10 5
Período total de contribuição (anos) 49 40 35 30
% teto com período total de contribuição 100% 91% 86% 81%
Expectativa de vida (anos) 85 85 85 85
         
         
         
                                  Resultados
Simulação Irrealista Otimista Realista Pessimista
Poupança para garantir a renda desde o término do contrato de trabalho até a idade mínima para aposentadoria 0 0 0 508.810
Poupança para garantir o complemento integral da aposentadoria do INSS 0 99.287 154.447 209.607
Poupança para garantir o suplemento da aposentadoria do INSS 396.177 661.916 661.916 661.916
Valor total da poupança 396.177 761.203 816.363 1.380.332
Necessidade de poupança mensal em relação ao salário ao longo do período de atividade 3,6% 9,3% 12,1% 25,2%